História de uma vida
A história que vos vou passar
não é para rir nem para chorar
se há coincidências ou não
deixo à vossa consideração.
Azoriana
«Era uma vez uma menina, daquelas que tem caracóis, e se não tivesse, inventavam-lhe uns com tiras de pano branco, e que chegou a vestir uns vestidinhos de tule, veludo e cores de demais fitas e lacinhos, que vinham das Américas, para lhe dar beleza mesmo que já se sentisse bela junto das belezas naturais da sua terra com cheiro a cedro e sal.
Filha de pais exemplares, sem defeitos que se notassem do exterior do recinto doméstico, cumpridores de suas obrigações civis e religiosas, honrados trabalhadores do nascer ao pôr-do-sol, e de quem não se admitiam falhas próprias ou dos descendentes. Isso era uma inquietação permanente para esta menina, que deixou de ser a menina que de tempos a tempos se olhava no espelho para confirmar as bocas que ouvia, de que seria bonita e cativante. Estes elogios sabiam-lhe bem mas não duravam o tempo suficiente para se tornarem reais.
Passou, então, a fazer outros percursos no seu dia-a-dia que a obrigavam a conhecer novas gentes e lugares, a estudar os livros que os pais lhe compravam quando iam à única cidade que ela sabia que estava à distância de uma viagem atribulada do transporte público que começava a ser a novidade de outrora. Esta menina começava a fugir-lhe a inocência. (Que pena!)
Aos poucos descobria que o seu mundo era tão monótono e rotineiro. Novas visões explêndidas se lhe deparavam pela frente, tantos sonhos acercavam-se da sua mente, tantos desejos impossíveis de realizar. Queria ser diferente mas por si só não o conseguia. E sonhava, sonhava...
Quando surgiu a caixinha mágica que possibilitava ver os filmes em casa, ao alcance de um botão redondinho, ela adorava aquelas cenas apaixonadas, aqueles amores que no fim deixavam no ar a emoção da frase: "e viveram felizes para sempre", como num conto de fadas. Salvava-se sempre o autor ou actriz principal e até podiam morrer os outros todos, que só interessava o final ser feliz. Não lhe era permitido ver todas as cenas e sobretudo as que continham eventos chocantes e se destinadas só para adultos.
Então, ela olhava-se no espelho e reparava que ele não lhe dizia ser bonita como as donzelas dos filmes. (Que grande pena!...)
Eis que, de repente, os infortúnios da vida foram sucedendo. A doença bateu à porta dos progenitores e outras tragédias que marcaram para sempre esta jovem. Teve que ser adulta à pressão. Aprendeu a fazer de tudo, quer nas lidas domésticas quer nas agrícolas. Tanto sabia lavar a roupa como cavar com a enxada. Só não apreciava tanto o lume do fogão.
Não havia filhos varões naquela moradia, perto da serra, mas havia esta jovem que era chamada a ajudar, mesmo que a vontade nem sempre estivesse acordada.
Depois que foi estudar para outra escola, ela ficava triste porque via as suas colegas com namoricos e ela por si ficava tão à margem. Convencera-se de que era menos bela e apenas devia cumprir com as normas ditadas pelos pais e ser a melhor em tudo a que se dedicasse. Decorou páginas e páginas da sabedoria de tantos livros, com vírgulas, pontos e exclamações. Com o passar de ano, ela esquecia grande parte do que estudara e o que ficava ainda activo era sobretudo o que a marcara mais, pela negativa.
Um dia, o espelho sorriu-lhe. Ela tinha um namorado. Oh! Que felicidade! Os sonhos podiam tornar-se realidade. Seria tudo diferente e teria a sua independência. Teria uma casinha, um cantinho onde podia amar, beijar e construir a sua história de fadas, muito romântica, onde se podia ler no fim: "e foram felizes para sempre". Tão lindo... lindo!
Seguiram-se uns anos de encontros domingueiros e sempre às claras. Esta jovem via crescer em si todos os sintomas de que estava apaixonada por alguém. A partir daí foi fácil reunir todos os apetrechos de um lar e chegou o bendito dia do enlace. (Uma cerimónia inesquecível!). A noiva era suposto não chegar primeiro que o noivo, mas chegou e teve de aguardar. (Mau sinal, diriam algumas vozes!).
Estava tão feliz! Estava alcançando tudo o que mais sonhara. Se se olhasse o mapa-mundo havia um pedacito que era deste recém casal, onde as ervinhas, o pequeno jardim, as pedras que muravam o recinto, a casa branquinha asseada de onde se avistava os tons verde e azul, terra e mar, pareciam receber este casal com uma alegria infinita.
Afinal tudo o que ela vira nos filmes cor-de-rosa estava a acontecer-lhe na vida real. Só que não foi eterna esta maravilha. O cor-de-rosa aos poucos foi-se tornando cinzento. Quanto mais amor queria dar e receber, mais ele fugia como se tivesse espinhos.
Aquela menina, agora feita mulher, tinha então outros bens que tinha dado à luz: os filhos que eram o fruto de seu amor. A maior alegria que teve na vida foi saber-se mãe. Tinha sentido dentro de si a emoção do crescimento dos filhos e fora ela que tinha dado o primeiro beijo após o nascimento de tão queridos entes. Como é lindo o nascer de um filho!
Descobriu que não era tão importante a sua beleza física, mas o conseguir que aos filhos não faltasse o essencial.
Mas esta mulher continuava a lutar e a sonhar, mas o sonho perdeu a forma toda e despenhou-se por entre choros, pranto e mágoas. Abalada ficou toda a confiança e abriu a porta à sua libertação, numa grande confusão.
A partir daí, muito se passou abaixo das nuvens (daria um filme) e os sonhos são pedaços do sono numa folha de água... O maior sonho é a total libertação e ainda ser livro antes que mergulhe na terra do epitáfio.»