Já se contam as passadas... (1)
Na chama de um teclado atiçado pelos dedos incansáveis, a noite de sexta-feira, última do mês de Agosto, caía devagar. Que pena que não ouço ninguém chamar-me. O telefone toca mas é engano. Tudo se confina ao jogo que um rosto sorridente apresenta aos presentes numa sala curta e estreita. E eu embrenhei-me no teclado, olhando de soslaio para o silêncio da noite...
- "Então que contas? Alguma novidade?"
- Olá. Novidade. Que novidade?
- "Eles querem vir?"
- Não sei. A esperança é a última a morrer... Olha lá... Achas que sou egoísta por pensar tanto Nela?
- "Egoísta não diria... Bairrista talvez... E o passado deixou-te marcas profundas..."
- Isso é mau?
- "Depende. Se isso te faz feliz e se te sentes bem, quem sou eu para te condenar."
- Fiquei deveras feliz por me ver lá de novo. Senti-me completa. E queria que o mundo se sentisse como eu quando estou ao pé Dela...
- "O mundo?! Ainda achas que há hipótese do mundo ser feliz e completo?!"
- Talvez... Se todos puxassem para o mesmo lado... Mas isso seria monótono ou não?
- "O que é para ti ser feliz?"
- Ser feliz é não brigar, não gritar, abraçar quem não se vê há muito tempo, matar saudades, regressar ao berço...
- "Ao berço?! Mas tu já não és bébé nenhum... Que história é essa..."
- É uma maneira de falar... Regressar ao lugar onde nasci... Rever caras conhecidas que aos poucos foram enevoando...
- "Ah, entendo... Sentiste que voltavas ao que eras..."
- Porque me dizes isso se nem me conheces?
- "Porque o teu olhar diz tudo..."
- Achas que sou assim como um espelho de água?
- "Por muito que tentes disfarçar está escrito..."
- Escrito... Onde? No...
- "Não. Não é nesse sítio que estás a querer dizer... É no eco das tuas palavras..."
- Será só nas palavras? Numa coisa tens razão, não passam de palavras ao vento que não terão onde cair. Gostava tanto que elas caíssem no papel e na estante da vida...
- "Pois é... Nem isso consegues realizar. Tem um mundo inteiro a sonhar e pouco se realiza..."
- Porque me dizes isso? Quem és tu?
- "Sou o que quiseres que eu seja."
- Quem me dera que fosses Ela para alegrar a mim e a tanta gente que também gosta Dela...
- "Quem mais gosta dela?"
- Tanta gente... E há uma senhora que aprendeu a gostar Dela através do que lhe fui contando...
- "Quem? Podes revelar?"
- Sim... Vive à beira do rio Ceira... E mais que eu, anda empenhada no eco das palavras ficarem em papel... E não consigo dar-lhe esse gosto... A labuta dela impressiona-me. Eu desisti porque não tenho alternativa alguma...
- "Afinal do que falas, mulher?"
- Falo do meu e de um livro meu e dela... Tinha um sonho e apareceu outro para ficar também por realizar. E era tudo por Ela e por um passado que me vem à mente...
- "Então deixa por conta Dela. Ela se quiser vai ordenar a quem isso toque profundamente no coração... Confia. Não tenhas pressa..."
- Mas e se morro antes de os ver nas nossas mãos?
- "E quem te disse que não os verás?"
- Pois ninguém disse nada... Lá isso é verdade... Achas que devo manter a esperança?
- "Alguém vai ouvir-te e ler-te. Terás a resposta. Não é tanto pelo valor das coisas mas pelo valor dos sentimentos. E tu, sem dúvidas, tens o sentimento à flor da pele..."
- Pela nossa Serreta...
- "Tiraste-me as palavras da boca..."
- A Serreta está personificada e santificada pela Mãe... É Ela que move montanhas de fé...
- "A fé... Acredita a fé é que realiza sonhos. Confia Nela e no rio Ceira. Perto do rio Ceira tens uma amiga verdadeira e que já te quer bem..."
- Eu sei... Já tive provas disso. Ela é uma boa senhora...
- "Agora acalma-te e pensa só em coisas boas..."
- Sim. Estou pensando que estou louca por chegar a Festa Dela... Aquele mar de gente a cantar no adro...
- "Já sei... «Ó glória da nossa terra»."