Os escritos são laços que nos unem, na simplicidade do sonho... São momentos! - Rosa Silva (Azoriana).
Criado a 09/04/2004. Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores. A curiosidade aliada à necessidade criou o 1
Criações de Rosa Silva e outrem; listagem de títulos
Motivo para escrever: Rimas são o meu solar Com a bela estrela guia, Minha onda a navegar E parar eu não queria O dia que as deixar (Ninguém foge a esse dia) Farão pois o meu lugar Minha paz, minha alegria. Rosa Silva ("Azoriana") ********** Com os melhores agradecimentos pelas: 1. Entrevista a 2 de abril in "Kanal ilha 3" 2. Entrevista a 5 de dezembro in "Kanal das Doze" 3. Entrevista a 18 de novembro 2023 in "Kanal Açor" **********
Na rua longa e escura
o silêncio era a ordem natural. Ninguém ousava sair à rua porque no
interior residencial o calor humano fazia-se sentir e era muito melhor
que o frio mórbido do exterior. Uma nuvem pairava sobre aquela pequena
mansão cuja iluminação radiosa dava um ar de festa a tudo o que a
circundava. E lá estava a nuvem como que absorta àquele espectáculo de
luz e magia. De repente, um cão da vizinhança ladra agressivamente.
Alguém ia passando embrulhado em farrapos quentes, acompanhado pelo
seu cão de guarda. Em passos lentos e pesados descia a rua
atabalhoadamente balbuciando palavras em surdina. Parecia um fantasma
da noite. "Quem me dera entrar nesta casa. Gostava de ver o rosto
desta gente e a sua alma..." O cão que o acompanhava parou em frente a
um portão que bem merecia ser reparado, e ladrou até que o seu amigo o
mandou calar. O cão obedeceu prontamente e seguiu viagem com ele. Hoje
a rotina tinha mudado. Na véspera de Natal não tinha ninguém que
festejasse com ele nem tão pouco se importasse com ele. Mais valia ir
de portão em portão na sua rotina que trocara da manhã para a noite.
Não queria ser visto mas queria sentir-se acompanhado. Estava
demasiado só para ser visto e olhado com indiferença. Há muito que o
seu Natal permanecia um fantasma na noite mais apetecida do mundo. O
seu sapatinho agora com um formato bicudo mas lustrado a rigor, era a
única peça que não tinha grande utilidade nessa noite especial, apenas
servia para galgar as ruas que o levavam junto dos portões ávidos pelo
depósito daquele papel dobrado cheio de letras felizes. Pudera! Eram
as letras do Natal, os votos de um punhado de gente feliz, os desejos
mais salutares, as "massagens" de quem não sabia o que fazer para
receber um salário por serviços prestados, e muitas imagens
"cintilantes" muito diferentes das reais imagens que podiam ser
captadas daquela pequena mansão que atraíra o ladrar do seu
companheiro fiel e amigo - o Magano.
Não se sabe a razão mas o Magano em vez de ladrar passou à fase do
ganir. O amigo Jonas acabara de lhe apressar o passo pois o raio do
cão não havia maneira de avançar caminho. Fixou-se em algo caído
contra a valeta. Era um xaile negro, todo enrolado, e parecia deixado
de qualquer maneira em virtude de algum acontecimento recente. Não
estava sujo nem nada, apenas permanecia contra a valeta e o cão não
queria sair dali de maneira alguma. Gania e olhava o Jonas que se
decidiu a ver o que se escondia debaixo daquele xaile negro... Era um
Menino todo despidinho e com um sorriso que parecia inundar o rosto do
Jonas. Já não tinha uma mão e uma perninha estava como que raspada. De
resto, era um lindo Menino de cerâmica pintada à mão. Quem o teria
pintado assim tão risonho? Quem o teria largado junto do xaile negro
para talvez não sentir o frio daquela rua longa?
Então, comovido pela cena inesperada de uma véspera de Natal, o Jonas
pegou no xaile que envolvia o Menino e levou-o consigo rua abaixo.
Juntou-o à sua sacola dos diários matutinos que, excepcionalmente,
foram distribuídos à noite. Uma noite calma e com uma nuvem que ainda
mantinha o formato de fantasma gigante. Jamais o Jonas irá esquecer
aquela nuvem e aquele momento do encontro com o Menino. Era a sua nova
companhia na longa caminhada das novidades. Uma lágrima caiu pelo seu
rosto e o cão apercebeu-se disso porque ganiu de novo e nunca mais se
arredou do pé do amigo Jonas. Este nem era o seu dono mas gostava de
acompanhá-lo sempre que o ouvia chegar junto da casa onde tinha os
seus apetrechos. Era um cão bondoso e abanava a cauda todo contente
porque obtinha do Jonas apenas um olhar carinhoso e amigo. Isso
bastava-lhe e retribuía-lhe da maneira que podia.
Quando o Jonas acabou a sua ronda e voltou para o seu casebre, acendeu
o candeeiro de petróleo, tirou os sapatos cansados e embrulhou os pés,
depois de os escaldar numa água bem quentinha com sal, no xaile negro
que trouxera toda a viagem e colocou o Menino na sua frente num
pequeno recipiente que escolhera para o deitar e quedou-se a olhar
para Ele toda a santíssima noite. O cão seguira-o até àquele casebre,
ao contrário do que era habitual, como que contagiado por aquela
maravilha e ficara no lado de fora da porta, devorando um bocado de
pão que o amigo lhe dera. Era como que a recompensa pelo achado.
A adoração continuava no interior e a fogueira ia aquecendo o Jonas,
cansado, e o Menino Jesus deitado. Ninguém sabe o que o Jonas
balbuciara junto do Menino mas parece que o sorriso deste se iluminou
e a sala pequena ficou radiosa. Nisto, Jonas adormeceu naquela cadeira
de braços, que ele próprio tinha feito para as horas de repouso.
Naquele momento era o que bem necessitava após os quilómetros
percorridos levando as notícias diárias. Aquele ardina encontrara a
sua fortuna: um Menino de ouro. Confidenciava ele depois aos
amigos: "Encontrei o meu Menino de ouro!". Todos ficavam sem perceber
o que ele queria dizer... Mas era verdade, Jonas não tinha família e
Aquele tinha sido a sua companhia na véspera de um Natal diferente.
Era o Menino Jesus que parecia ter vindo de propósito para o seu
caminho para ele não ficar só no Natal.
Afinal, quem teria ficado só no Natal, sem aquele Menino? Ninguém...
Como aquele Menino havia mais pois quem os pintava tinha muitos outros
iguais... Quem deixara aquele Menino na valeta embrulhado num xaile
negro era quem habitava naquela pequena mansão e sabia que aquele
ardina viria por aquela rua longa e escura... Aquele Menino trazia a
felicidade de uma Véspera de Natal. Fim.
[História de ficção para a "Fábrica de
Histórias" inspirada em factos reais que serviram de mote para
fantasiar a escrita. A todos um Natal repleto de carinho, paz,
harmonia, saúde, alegria, amor e a companhia de um Menino
Jesus.]