"aldeia da roupa branca" (e pensamentos da Azoriana)
Ainda sou do tempo de ouvir a voz escancarada de Beatriz Costa, a tal actriz dos filmes Black&White portugueses, digo, Branco E Preto, de outro tempo em que a crise também existia mas não era conhecida como tal. Vivia-se do suor do rosto, da força braçal, da garganta funda (ou não) e da crença de que se a gente não pudesse alguma entidade superior faria o resto… Até se podia dormir à sombra da bananeira que no outro dia tínhamos bananas trocadas, a retalho, por uma maquia de milho ou feijão.
Ainda sou do tempo de ouvir a água cantando ao toque dos dedos rasos da sabonária poética que deixava a roupa mais branca que neve após ter estado estendida num chão verde manso durante a fase noturna de um dia sem sobressaltos.
Ainda sou do tempo de se comer o que ficava de véspera e nem uma migalha se perdia e até os animais de estimação contentavam-se com os parcos miolos de leite que a vaca mimosa, passo a publicidade (essa coisa enganosa), nos dava em directo da teta bem acarinhada pelos socalcos de umas mãos calejadas, sem penas, e coroadas de bem-fazer para saciar a massa humana do agregado familiar, abundante e saciável com o pão que o diabo amassou.
Ainda sou do tempo que gostava de ter tempo de voltar a ser do tempo de uma “aldeia de roupa branca”(*), de vozes escancaradas ao verso do monte e à rima do mar, do beijo de amor e o abraço amigo e verdadeiro. Será que ainda há tempo?! (Não me falem mais em crise… Crise?! Onde?!)
Rosa Silva (“Azoriana”)
(*) Aldeia da roupa branca
Ó rio não te queixes,
Ai o sabão não mata,
Ai até lava os peixes,
Ai põe-nos cor de prata.
Três corpetes, um avental,
Sete fronhas, um lençol,
Três camisas do enxoval,
Que a freguesa deu ao rol.
Água fria, da ribeira,
Água fria que o sol aqueceu,
Velha aldeia, traga a ideia,
Roupa branca que a gente estendeu.
Um lençol de pano cru,
Vê lá bem tão lavadinho,
Dormindo nele, eu e tu,
Vê lá bem, está cor de linho.
Mafra, 14/12/1907 - Lisboa, 15/4/1996
Beatriz da Conceição ficou conhecida como «a menina da franja» devido ao corte de cabelo que popularizou.Foi actriz, escritora e cantora. Destacou-se no teatro e cinema português, sendo um ícone da cultura popular portuguesa. Estreou-se no teatro de revista aos quinze anos como corista em «Chá e Torradas» e actuou pela primeira vez no teatro Maria Vitoria na revista «Rés Vês» (1924).No cinema, imortalizava-se no filme “A Canção de Lisboa” (1933) e “A Aldeia da Roupa Branca” (1939).
E aqui e ali num poema ("Uma Flor para Beatriz", de Paulo Alexandre, in http://tvpinheiro1.blogspot.com/)