Vivência de outrora nas trajetórias de agora
Fecho a cortina do olhar e dou por mim envolta nos tempos infanto-juvenis. Depois dos rigores do inverno em que a humidade subia vertiginosamente ao ponto de escorrer água pelas paredes dos quartos de uma casa bem perto da serra, vinha o bem-aventurado verão suave e sem deixar grandes marcas de bronzeado. Só aconteciam marcas se a exposição solar fosse horas a fio e, mesmo assim, tinha de estar em local aprazível. O que volta em torrentes da lembrança são as horas que passava entre o abrir da tampa das caixas de madeira antiga (baú) e a porta com serventia para um quintal cuja saída para a canada se fazia por umas cancelas que se abriam de par em par, até que a tarefa de assoalhar estivesse cumprida.
Quase ao romper da aurora, já se sabia qual o percurso a seguir: tirar todas as roupas guardadas durante um ano e coloca-las sobre as paredes, cadeiras ou bancos, a jeito do sol tirar o cheiro mofento que abundava sobremaneira. O ritual era sempre o mesmo: limpar muito bem a caixa no seu interior e exterior para voltar a guardar as roupas após ganharem a lavagem e/ou assoalhamento de um dia inteiro, num espreguiçar satisfeito dando um colorido vistoso às paredes daquela canada e daquele quintal. Eu adorava a descoberta de vestes antigas que não me cabiam no corpo mas preenchiam o meu imaginário. Por entre mantas, cobertores, colchas, lençóis, tapetes, almofadas, corpetes, camisas, saias, blusas, aventais, casacos, gravatas, toalhas e as bolas de naftalina, havia sempre algo de novo ou algo estragado pelas nódoas encarceradas entre as tábuas húmidas e bolorentas.
Na volta ao aconchego da limpeza doméstica, e após dobrarem-se muito bem todas as peças frescas e impregnadas com um perfume do campo, recorrendo-se, muita vez, a quatro mãos para que se unissem muito bem as pontas dos lençóis, mantas e cobertores, tinha-se o prazer de ver o efeito mágico do sol que secava as roupas que se lavavam nas pias de pedra com recurso a paralelepípedos de sabão azul e branco cujo perfume era bem melhor do que o da atualidade.
Eu assistia e ajudava a todo esse trabalho que tinha de ser feito sob pena de todas as roupas se perderem caso não fossem arrecadar algum calor solar.
Como era lindo o estendal da roupa branca numa aldeia serrana. O verde dos campos florescia e o cantar das aves dava a melodia plena de prazeres sonoros. Nunca mais passarei por esses rituais longínquos, nem tão pouco irei ver ou irei ouvir a alegria dos que me rodeavam nessas tardes de um verão solene. Somente posso deixar registado vivências de outrora nas trajetórias de agora.
Rosa Silva (“Azoriana”)