O discurso de José Eliseu para a história de vida de Luís Bretão e da cultura popular açoriana
Não me atrevo a tecer, agora, grandes comentários sobre a prosa seguinte, da autoria de José Eliseu, o nosso brilhante cantador, porque ela por si só é um documento que me honra divulgar com a autorização do seu autor. Bem-haja quem assim escreve sobre o que é nosso e inigualável. Ora leiam:
A ilha Terceira, em mais de meio milénio de povoamento, tem sido berço de pessoas que se tornam figuras incontornáveis pelo que escrevem, dizem, cantam, ensinam, pelo que fazem, pelo que são.
Outras há que pelo seu carácter, integridade e simpatia tornam-se exemplos da intrepidez e tradição cavalheiresca que têm marcado gerações nesta ilha redonda.
Neste lote está sem dúvida Luís Carlos Noronha Bretão.
Nascido em pleno coração de Angra e filho de um dos mais insignes doutos da cidade, Luís teve sempre o condão de nunca esquecer as suas raízes rurais por via paterna, da freguesia de Santa Bárbara deste concelho.
E talvez isso tenha condicionado a moldagem da sua personalidade.
É um homem solidário, de diálogo fácil e aberto, franco, prestável, leal e sem qualquer capa de fingimento.
Em termos profissionais, justificou sempre cabalmente a remuneração mensal pelo bom nome que constantemente deu à companhia aérea que servia.
O modo despretensioso com que se pôs ao serviço da entidade patronal SATA, fez-lhe granjear fama e proveito de funcionário exemplar.
Sabia solucionar problemas agudos com eficácia sem perder o bom humor nem descurar a idoneidade.
O espírito serviçal fazia até com que se expusesse aos superiores hierárquicos só para atender à especificidade de cada caso.
Não poucas vezes, alguns dos cantadores que aqui marcam presença necessitaram de sair de uma lista de espera para a de passageiros confirmados em determinados voos.
E Luís quase sempre resolvia o que parecia ser irresolúvel.
Noutras ocasiões, era solicitado um olhar complacente para o excesso de peso de malas a abarrotarem.
A todos esses pedidos de ajuda, Luís atendia com afeto e resolvia com a eficácia possível em face da circunstância e dentro daquilo que as suas competências permitiam.
Ser simultaneamente divertido, cortês e resoluto valeu-lhe vários encómios até de transeuntes oriundos de outras paragens que pela tendência da generalização levaram uma imagem muito positiva das gentes desta ilha.
O cosmopolitismo associado aos aeroportos não condicionou o seu sotaque genuinamente terceirense.
A pronúncia bem fincada, falada por vezes a um ritmo matraqueado, dá um toque alarachado e divertido ao seu discurso.
A sua passagem pela política pode considerar-se relativamente efémera, mas marcante, na antiga Direção Geral dos Desportos, em período revolucionário.
A sua ação foi norteada por um espírito de missão, raro nos tempos que correm, que o fez colocar o interesse coletivo bem acima do individual.
Numa época de enorme agitação social e discussões ideológicas quase milicianas, soube transpor obstáculos políticos, conciliar antagonistas, aglutinar vontades, mobilizar jovens e vitalizar instituições.
Com poucas verbas ao dispor, conseguiu, graças a uma notável criatividade, generalizar a prática desportiva e ativar modalidades.
Luís Bretão foi empreendedor e parcimonioso na gestão de recursos, virtudes que fizeram dele um marco indelével no dirigismo desportivo dos Açores.
Enriqueceu o seu currículo com passagens por equipas dirigentes e pela cadeira presidencial do seu clube do coração, o Sport Clube Lusitânia.
Mas, se perpassarmos pela biografia do Luís, uma das efemérides com maior quota de responsabilidade por estarmos aqui hoje nesta homenagem é quando a família Bretão decide fixar residência em São Carlos.
Este lugar, de casas solarengas, palacetes e quintas de grande imponência e harmonia arquitetónica, que encantaram a Rainha D. Amélia aquando da visita régia em 1901, é dormitório duma grande parte da elite angrense.
Nesse sítio aprazível celebra-se todos os anos a festa em honra do Divino Espírito Santo no terceiro domingo de setembro.
Imbuído de sensibilidade para as tradições populares, depressa Luís Bretão se tornou um dos principais benfeitores do império.
Na 5.ª feira da festa de São Carlos é quase de lei a realização do pezinho vespertino e da cantoria noturna.
Na tarde desse dia, as estradas, canadas e caminhos ganham vida com a passagem dos músicos filarmónicos a tocarem a doce melodia do pezinho, as moradias escancaram-se, as mesas ficam lautas, o benfeitor espera ansiosamente o cortejo junto à porta nobre da casa, os arpejos das violas são silenciadores dos acompanhantes, os mordomos esmeram-se por dar informações profícuas aos cantadores que, perfilados, improvisam em conformidade.
A moda cantada tende a suscitar reações diametralmente opostas, como sejam o choro e o riso.
Emociona quando são abordados temas do foro sentimental e diverte quando há motejos adequados à pessoa visitada ou à própria circunstância.
Agradecimentos e elogios aos donos da casa são incumbências obrigatórias dos poetas populares, de modo a que o anfitrião sinta a gratidão da comissão das festas.
Findo o cantarejo, e de novo ao som dos harmoniosos sopros musicantes, a comitiva é convidada a saborear os pitéus selecionados para a ocasião.
Toda esta praxe encanta Luís Bretão.
A sua residência passou a ser franqueada às romarias dos pezinhos de São Carlos.
Nasce, então, a admiração pelos cantadores como trampolim para a formação de laços de amizade que perduraram até hoje.
Ele olha-nos, não com altivez, mas com humildade; fala-nos não com aspereza, mas com meiguice; incentiva-nos não com hipocrisia, mas com sinceridade; critica-nos não com insolência, mas com respeito; escuta-nos não com sacrifício, mas com deleite, abraça-nos não com cinismo, mas com a mesma estima com que hoje o homenageamos.
A poucos metros do alçado tardoz da sua vivenda construiu um alpendre retangular destinado a reuniões de família, convívios, tertúlias, festas comemorativas e encontros gastronómicos.
Quem teve e tem a sorte de participar nesses eventos privados, deles sai com o estômago atestado e com o ego fortalecido pelos sorrisos límpidos e gestos acolhedores do Luís e da Luísa.
Realce para ela, esposa que preza as decisões do marido, acompanhando-o, auxiliando-o e assumindo alegremente o papel de provedora de mantimentos.
Até o Duarte, descendência única do casal, quando em tempo de solteiro, não se limitava a ser comparsa, mas elemento festeiro ativo, trazendo à evidência o aforismo: “tal pai, tal filho”.
Foi, então, no telheiro do Luís, onde se podia e pode provar a maior variedade de queijos curados, que os cantadores se tornaram presença frequente como animadores de serão.
Muita da classe citadina aprendeu a valorizar os improvisadores precisamente na casa do Luís Bretão.
Ele faz questão de brindar os seus convidados, em momentos considerados especiais, com cantigas ao desafio que acabam por divertir à conta dos motes específicos que são fornecidos.
Para o Luís, não há nomes mais ou menos sonantes entre os cantadores.
Trata todos com igual deferência.
O nosso homenageado orienta a sua vida por princípios morais nobres, além de ser prestável, caridoso, solícito, compreensivo e bondoso.
Talvez por isso, São Pedro lhe tenha entreaberto a porta do céu para que este se enriquecesse com a entrada de uma alma sã.
Parecia ser essa a consequência de um acidente vascular cerebral que o deixou vários dias fora do mundo, embora vivo.
Mas Deus foi sensível aos prantos e orações que continuamente saíam da Terra e revogou a decisão do seu apóstolo.
O Omnipotente insuflou o divino sopro revitalizador no corpo do Luís, para júbilo dos seus familiares, amigos e conhecidos.
Reabertas as pálpebras, voltou a São Carlos para iniciar uma nova fase da sua vida.
Perdeu pujança física, diminuiu muito a agilidade dos membros canhotos, mas manteve a lucidez e uma impressionante longanimidade.
Mesmo limitado nos seus movimentos, o que originou inevitavelmente dependência, continuou a organizar festins, a receber pezinhos e a dinamizar iniciativas de índole cultural.
Com mais tempo livre, aprofundou conhecimentos sobre as cantigas ao desafio, estudou as características dos repentistas e compreendeu melhor o glossário do vernáculo popular.
Foi mentor de algumas homenagens a cantadores e tocadores, bem como orador em outras cerimónias de agraciamento.
Recolhe textos e depoimentos sobre tradições terceirenses, figuras marcantes e típicas do povo, improvisadores, violistas e até sobre momentos de culto, compilando-os em pequenos opúsculos.
Estas publicações oficiosas, chamemos-lhe assim, são juntadas a material diverso de publicidade nos famosos “sacos do Luís Bretão”, que são oferecidos, em acto público, aos cantadores e tocadores presentes no pezinho de São Carlos.
Meus caros colegas, o Luís Bretão nutre carinho por nós, mas esse sentimento é recíproco.
Ele ajudou a quebrar barreiras preconceituosas e a desfazer a ideia de obtusão associada aos cantadores ao desafio por alguns aristocratas.
Trata todos os elementos da classe com igual afabilidade independentemente do traquejo ou capacidade poética.
Na mesma medida incentiva e promove os principiantes, como eleva o seu preito aos veteranos da velha guarda.
Faz da sua casa ponto de encontro e de divulgação desta arte de que nós somos intérpretes.
Luís é conselheiro, conciliador, altruísta, cordial, sincero, alegre e amigo.
Pessoalmente, aproveito esta oportunidade que me é dada para publicamente mostrar a mais profunda gratidão pela amizade que o Luís me tem dispensado.
Demos-lhe um abraço de felicitações pelo seu sexagésimo oitavo aniversário com o desejo de que viva muitos mais anos na nossa companhia para que nos contagiemos pela sua boa disposição e nos orientemos pelo seu exemplo de vida.
É, portanto, com regozijo e com a sensação de dever cumprido, que os cantadores e tocadores terceirenses prestam esta singela e justíssima homenagem a um dos maiores dinamizadores culturais da ilha Terceira.
A melhor conclusão que descobri para esta oratória é uma exclamação que expressa o que verdadeiramente sentimos: “Luís, és um dos nossos!”
Disse
José Eliseu Costa.
Nota: Discurso proferido pelo orador convidado, nosso brilhante cantador terceirense, durante a cerimónia de homenagem a Luís Bretão, PEZINHO “PERCURSO DE UMA VIDA”, no salão da Sociedade Musical da Terra-Chã, no dia 31-05-2013.
Apetece-me exclamar bem alto: Que maravilha de discurso! Que maravilha de orador, cantador e gentil amigo da ilha, da Região e de outros continentes, que soube dizer tudo excelentemente sobre o seu fiel amigo Luís Carlos de Noronha Bretão.
Bem-haja e parabéns!