Artigo histórico de Fagundes Duarte
O ideal e recomendável seria pedir autorização ao autor e/ou ao diretor do jornal, para republicar na íntegra o conteúdo do Folhetim 637, de Luiz Fagundes Duarte, cujo título é nem mais nem menos do que o nome dado a um restaurante serretense, típico, claro está, e que me fez recordar outras eras numa história que já conhecia mesmo sem me lembrar do tal personagem nem da recente descoberta do que aconteceu às galochas do mesmo. Que a filha tinha falecido de corrente de ar também já sabia. Mas as galochas é que me plantaram um sorriso e, caso eu fosse leiga, perdoaria a ocorrência como medida de louvar a escrita sempre inimitável e sábia do conterrâneo Fagundes Duarte.
Leio e volto a ler.
Copio e colo como que numa vontade da escritura prevalecer tal e qual foi gerada e digna de ser considerada um ARTIGO HISTÓRICO, com todos os requintes de um passado recente. Desta escrita sem mácula podem-se extrair tantas vivências e formas de vida de um paraíso terrestre. Ei-la:
Folhetim (637)
Luís Fagundes Duarte
Ti' Manuel Xôa
Hoje não há na Terceira quem não conheça o restaurante típico Ti Xôa. Na Terceira, e um pouco por todo o lado, até porque já foi tema de artigos em grandes jornais de referência nacional. Mas muito poucos saberão o porquê deste nome. Por isso, e com licença do Sérgio Cardoso, seu proprietário, apetece-me hoje contar a história deste nome, que faz parte da minha história de vida.
Naquela casa, que era de pedra não rebocada, vivia o Ti' Manuel Tesoureiro, mais a sua filha Deolinda. Ele tinha sido emigrante por longos anos, primeiro na Argentina, e depois nos Estados Unidos, de onde regressara antes de eu nascer, não me recordando agora se a Deolinda já nascera ali ou separa ali teria vindo já nada. Sei que ele era viúvo, mas não me recordo de qualquer referência à sua defunta mulher: só sei que, durante toda a minha infância, viviam naquela casa o Ti' Manuel Tesoureiro mais a sua filha Deolinda - uma solteirona meia entradota e roliça, a dar para o serva de Deus, de basta cabeleira loira e óculos muito grossos de míope extrema assentados num nariz arrebitado com as narinas alargadas de tanto enfiar rapé. Ela passava o dia à janela, vendo quem passava com os seus olhinhos miudinhos, e ele na sua faina de lavrador pobre, muito magrinho nas suas calças de cotim, nas suas sapatas de sola de pneu atadas com atilhos de coiro, e, entre as calças e as sapatas, os baixos das suas ceroulas brancas com os atilhos a dar-a-dar. Quando o chão estava mais alagado, as sapatas eram substituídas por umas galochas de madeira, com que ele - clapt-clapt-clapt - assinalava o seu passar no alcatrão do caminho.
O Ti' Manuel Tesoureiro falava com um acento espanholado de ex-emigrante sudaca e, fosse a propósito do que fosse, exclamava sempre "xôa! xôa!", o seu bordão linguístico para significar "sim", "com certeza", "tens razão!", muitas vezes completado com um "sim" - "xôa que sim!" -, a marca indefectível de ex-emigrante nas terras a América que assim reproduzia o "sure!" que os americanos, no seu falar inglesado, tanto gostam de utilizar por dá cá aquela palha. E por isso era mais conhecido por Ti' Manuel Xôa, ou, mais lampinho, por Ti' Xôa - designação que o meu amigo Sérgio inteligentemente adoptou para nome do restaurante.
Entre outras coisas, o Ti' Xôa capava porcos, operação que nesses tempos de falar pudicício era designada por "amanhar": ou seja, ele amanhava porcos. Um dia, a chamado de meu Pai, foi lá a casa para amanhar um porco; mas como tinha chovido muito, a rua do porco estava toda enlameada - pelo que o Ti' Xôa, para não estragar as galochas novas, as deixou do lado de fora, arregaçou as calças e as ceroulas, afundou-se na porcaria da rua do porco (passe o pleonasmo), e enquanto sacava da navalha (com que também cortava as fatias de pão e os nicos de queijo de S. Jorge na hora da comida) para amanhar o porco - que desatou a gritar de morte, de tal maneira que ainda hoje me arrepia e me leva a proteger com as mãos certas partes de mim -, eu não resisti a um impulso cá de dentro e vai daí roubei-lhe as galochas e fui escondê-las na rua das galinhas ao lado. O pior foi a palmada que apanhei depois, quando o meu Pai descobriu a marotice, e o remorso com que fiquei quando, dias depois, a Deolinda, tendo ido pôr-se à janela depois de ter lavado a cabeça com água quente e sabão azul e branco, apanhou uma pancada de vento encanado e morreu. Assim.
Depois de enterrar a filha, o Ti' Xôa nunca mais foi o mesmo: era uma alma penada nas suas ceroulas e no seu "xôa que sim!".
E eu nunca me perdoei de um dia lhe ter roubado as galochas.